CONSOLO
«Deus convocou o Anjo Consolador e mandou-o conversar com Cristóvão Colombo, que estava em profunda depressão desde as comemorações dos 500 anos do descobrimento da América (...). Segundo os revisionistas, em vez da conquista de novas almas para o cristianismo, o que houve em 1492 foi o começo de um genocídio, e em vez de disseminarem a cultura e a técnica entre os selvagens, os invasores os enganaram, escravizaram e pilharam.
E os revisionistas têm razão, diz Colombo, desconsolado, para o Anjo, quando este lhe pergunta qual é o problema.
- Foi tudo por minha causa!
- Espera um pouquinho - diz o Anjo.
- Quem precisava da América? O mundo estaria muito melhor sem a América.
- Não é bem assim.
- Claro que é. Seria muito melhor se em vez de um Novo Mundo, houvesse mesmo um abismo. E a Terra acabasse ali pelos Açores.
- Se você não tivesse descoberto a América, outro o faria. Aliás, dizem que os «Vikings»...
- Mas fui eu que descobri, entende? Eu. A culpa é minha.
- Pensa em todas as coisas boas que a América deu ao mundo.
- Cita algumas. (...)
- O cinema.
- Invenção francesa.
- A popularização do cinema, a indústria cinematográfica, Hollywood, os mitos, os artistas. Meu Deus, a Jacqueline Bisset!
- Ela é inglesa.
- Eu sei. Mas e a...
- Não adianta, Anjo. Você não conseguirá me convencer. Eu nunca deveria ter descoberto a América. (...)
- Pense nisto: quando chegou na América, você descobriu o fumo. Se não fosse você não existiria o cigarro!
- Obrigado. Agora vou ter milhões de mortos por câncer no pulmão na minha consciência também. (...)
- Espera. O chocolate! Você descobriu o chocolate.
- Isso. Me arrasa. Pisa em cima. Se não fosse eu, não existiriam o colesterol alto, a obesidade, a criança lambuzada e, provavelmente, a Suíça. Muito obrigado.
- A Coca Cola.
- Claro. O que seria da humanidade sem a Coca Cola.
- A batata!
- Hein!
- Se a América não tivesse sido descoberta, o resto do mundo não conheceria a batata.
- Hummm.
- É isso, Comandante! Está aí a sua justificativa histórica. Você descobriu a batata.
- Sabe que você pode ter razão?
- Claro que eu tenho razão! Se a América não tivesse sido descoberta, o resto do Ocidente não conheceria o puré.
- As batatas «noisettes»...
- Batatas rosti. E, meu Deus... A batata frita!
- É mesmo!
- Pense num mundo sem batata frita. A batata frita justifica uma existência.
- Puxa. Já estou me sentindo outro. Acabou a minha depressão. Mal posso esperar as comemorações dos 600 anos. Mereço todas as homenagens. Abaixo os revisionistas.
- Abaixo!
- Você restaurou o meu amor próprio. Obrigado!
- O que é isso...
- Você é um anjo.
- Só estou fazendo meu trabalho. »
Este texto, da autoria do escritor brasileiro Luís Fernando Veríssimo, faz parte de uma crónica publicada no jornal Público em 1993, pouco depois das comemorações dos 500 anos da descoberta da América.
É um prodígio de imaginação, um humor fabuloso e grande sentido de oportunidade. Genial.
4 comentários:
Genial e super bem disposto... mesmo como eu gosto!!!
Viva a batata :)
Giríssimo, adorei.
Apesar de preferir o arroz, não sei qual é melhor se o texto se a persistência desse anjo! :)
Lol!Genial mesmo!
Passa lá na Tasca, não tem anjo, não tem batata mas tem lá um desafio acompanhado de um prémio;)
Bjs***
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