sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Em Pessoa



Seguramente Fernando Pessoa escreveu:


LISBON REVISITED
(1923)

Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
(...)
(Heterónimo Álvaro de Campos)

Escreveu:


Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.

Também escreveu:

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(...)
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

(...)

(Heterónimo Álvaro de Campos)


Escreveu:

Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.

(Heterónimo Alberto Caeiro)

Apesar de ser um poeta multifacetado (ao extremo),
muito dificilmente Fernando Pessoa teria escrito isto:


"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios,
incompreensões e períodos de crise.

Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma .
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um 'não'.

É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo..."


**

Este último poema circula já há uns tempos na net,
com autoria atribuída a Fernando Pessoa.



Claro que eu não tenho a presunção de julgar conhecer toda a vastíssima
obra de Pessoa, constituída por largas centenas de poemas.

Mas quem conhece um pouco da obra deste poeta maior,
facilmente verificará que é absolutamente improvável
(para não dizer impossível) que o angustiado, insatisfeito e depressivo
Pessoa tenha escrito um texto tão optimista... tão levemente optimista.


Não digo que a mensagem não seja boa, mas não tem absolutamente nada
a ver com

a alma agitada de Pessoa nem com os sentimentos que ele
transmitiu, bem pelo contrário.

Passa uma mensagem totalmente contrária àquela que marca a obra
do poeta.

Já para não falar do estilo, nem vou entrar por aí...
Além de tudo o mais, como se não fosse já suficientemente óbvio,
são evidentes as marcas
do português do Brasil,
que marquei no texto a azul.

E ainda uma incorrecção: ...não esqueço de que...

Como amante de Fernando Pessoa e da sua obra genial,
apenas deixo aqui um apelo:

divulguem este poema à vontade, mas por favor não atribuam a sua
autoria
ao autor da «Mensagem».

7 comentários:

Isabel disse...

Adorei o post. Já era para ter escrito algo semelhante, mas não calhou. Este esclarecimento era urgente.
A professora de Português continua aí dentro bem vivinha!!!
Bjs

justme disse...

Eu sei que fica mal eu dizer, mas só cá entre nós, não sou das maiores fãs de F. Pessoa, apesar de lhe reconhecer a qualidade e gostar da sua obra; de facto o que escreveste aí não parece nada que tenha sido obra do espiríto irrequieto e pessimista de Pessoa.
Bjs.

Unknown disse...

Realmente são textos bem diferentes. Esse tipo de coisa tem acontecido com vários escritores famosos e até com jornalistas.


Bjs

ameixa seca disse...

Pahh, o Fernando pode ter bebido um copo, tomado um calmante, beijado uma amante e ter-lhe dado um momentâneo prazer de viver he he
Adoro Pessoa, ele é louco e eu sou possuída :)

Dani disse...

Olá Claudia,

Fazem isto também à Clarice Lispector e o Mário Quintana... Textos com lições de vida e de moral que nada têm a ver com a obra dos autores citados. Este tipo de literatura não é de auto-ajuda, mas as pessoas teimam em pensar que certos escritores praticavam o seu ofício para transmitirem uma "mensagem". E não é nada disso.
É algo que me irrita muito...
Pode haver um aspecto positivo, porém - quem nunca os leu pode ir à procura das suas obras.

Um abraço,

Cláudia Marques disse...

Mana, foste tu até que me alertaste para esta questão, já há uns bons tempos atrás... mas como o bendito poema cada vez está a ser mais divulgado, convém "dar uma forcinha" ao Pessoa... :)

Paulinha, não acho que te fique mal dizeres isso, não somos obrigados a gostar deste ou daquele poeta, é uma questão mesmo de gosto pessoal. Eu gosto muito dele, e conhecendo razoavelmente a sua obra, estas coisas fazem comichão... :)

Ana, infelizmente acontecem estes casos. Eu no início ainda pensei que o autor, por coincidência, se chamasse mesmo F. Pessoa, mas não me parece que seja isso.

Ameixinha, eu tb gosto imenso dele sobretudo por ser tão louco! Mas qdo a loucura se junta à genialidade, temos este resultado fabuloso.
Pois é, ele para escrever aquilo, só se estivesse completamente embriagado...

Dani, aí está um ponto fundamental: é que, infelizmente, quem divulga estes poemas atribuindo-lhe a autoria de outrem, com isso só prova que não conhece lá muito bem a sua obra... é que há coisas por demais evidentes... mas estão sempre a tempo de alterar essa situação, e aproveitar para conhecer. :)

Heloísa Sérvulo da Cunha disse...

Claudia,
Esse é o grande problema da internet. Textos e poesias são atribuídos a grandes autores que não os escreveram e, muitas vezes, jamais os escreveriam.
Por esse motivo, quando recebo algum texto por mail, nunca dou muito crédito.
Beijos.