segunda-feira, 20 de abril de 2020

Recordações

Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira nenhuma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação. Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a consolação que os sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. Ao invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade, mas falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido na mocidade, conservado na velhice», poderíamos propor: «memória na mocidade, recordação na velhice». Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto; mas o moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe; porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afastar, distanciar.

Soren Kierkegaard, in "O Banquete"

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Caravelas




Cheguei a meio da vida já cansada 
De tanto caminhar! Já me perdi! 
Dum estranho país que nunca vi 
Sou neste mundo imenso a exilada.  

Tanto tenho aprendido e não sei nada. 
E as torres de marfim que construí 
Em trágica loucura as destruí 
Por minhas próprias mãos de malfadada! 

Se eu sempre fui assim este Mar-Morto, 
Mar sem marés, sem vagas e sem porto 
Onde velas de sonhos se rasgaram. 

Caravelas doiradas a bailar... 
Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar! 
As que eu lancei à vida, e não voltaram!... 

Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020


Perdi meus fantásticos castelos 
Como névoa distante que se esfuma... 
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los: 
Quebrei as minhas lanças uma a uma! 
 Perdi minhas galeras entre os gelos 
Que se afundaram sobre um mar de bruma... 
Tantos escolhos! Quem podia vê-los? - 
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma! 
Perdi a minha taça, o meu anel, 
A minha cota de aço, o meu corcel, 
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias... 
Sobem-me aos lábios súplicas estranhas... 
Sobre o meu coração pesam montanhas... 
Olho assombrada as minhas mãos vazias... 

 Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"